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A Arquitetura Hostil e o Caso do
Vale do Anhangabaú
Das poucas memórias
profundamente afetivas que mantenho da minha cidade natal, São Paulo, talvez a mais
importante seja a de meus vinte anos, perambulando entre eventos culturais, festas e
protestos, todos eles sobre o plano de fundo do centro da cidade. Eu e mais uma
geração de amigxs e desconhecidxs, todos pertencentes às classes que tiveram o
privilégio de experimentar a cidade dessa forma ao mesmo tempo nativa e turística,
podemos dizer que, por um curto período da história, tivemos acesso a um sentimento
de que a nossa presença no espaço público era capaz de mudar a cidade tão hostil em
que vivíamos. Esse sentimento é fruto de um privilégio financeiro muito bem
reconhecido por mim - a ideia aqui não é romantizar essa relação excursionista que
xs jovens como eu puderam ter com a cidade de São Paulo -, mas traz em si um pingo
de verdade: nos anos anteriores à onda conservadora e de extrema-direita que se
formou no país desde as eleições de 2018, havia no ar um sopro rarefeito de
otimismo.
Antes de seguir nessa ideia, me deixem explicar melhor o contexto:
São Paulo é a maior cidade da América do Sul, possui 21 milhões de habitantes em sua
área metropolitana e é o centro financeiro, corporativo e mercantil do Brasil. Entre
as suas características mais notórias, a desigualdade social se destaca (não foi há
muito tempo que uma imagem de jornal viralizou na internet, mostrando um prédio de
um bairro nobre chamado Morumbi ostentando varandas com piscinas individuais em cada
andar, com vista para a comunidade de Paraisópolis, um dos maiores bairros
favelizados da cidade). Nesse cenário permeado por conflitos de interesse tão reais
que chegam a ser quase palpáveis, o centro de São Paulo está, quase sempre,
envolvido em jogos de poder para tentar se estabelecer lá um projeto higienista.
Entretanto, essa é a mesma região que, já há décadas, sofre com a negligência do
poder público e abriga em si uma população em situação de rua bastante vasta. E
nela, está o Vale do Anhangabaú.
O Vale, que na década de 80 passou por uma
profunda transformação em sua arquitetura, para se tornar um espaço público
acessível aos pedestres, abrigou muitos dos meus devaneios românticos com São Paulo.
Entre 2012 e 2015, muitos coletivos locais começaram a promover eventos culturais
gratuitos como forma de ocupar espaços ociosos do centro da cidade, dentre eles, o
Vale. Esses eventos, por mais que tivessem um engajamento mais direto de pessoas
como eu ou de realidades mais próximas a minha (lê-se: privilegiadas), traziam uma
proposta de utilização do espaço público bastante democrática - pelo menos em
relação a São Paulo e ao que eu tenho conhecimento fora de lá. Por serem eventos
sempre gratuitos, ausentes de qualquer estrutura formal excludente (seguranças,
controle de entradas, reserva de bilhetes e etc), o público principal de jovens se
misturava muitas vezes com as pessoas que já costumavam estar nesses espaços:
trabalhadores, pessoas em situação de rua, e trabalhadores informais que utilizam o
espaço público como local de trabalho.
É claro que seria muito fácil
romantizar esse movimento, esse princípio de interação entre cidadãos da mesma
cidade que, em outros contextos, jamais conviveriam lado a lado em um evento; ou
então dizer que levar festas e eventos culturais ao centro da cidade criaria
necessária e automaticamente uma democratização do espaço público. Mas no fim, assim
que esses eventos terminavam, eu e todxs xs outrxs que, igualmente, tinham outra
realidade para habitar, voltávamos para a segurança de nossas casas, em bairros mais
ou menos distantes, deixando o centro voltar a ser o mesmo espaço negligenciado e
perigoso de outrora. A ideia aqui é justamente reconhecer essa posição de
privilégio, mas também imaginar as hipóteses nascidas dessa experiência. Ao menos do
meu ponto de vista, essa experiência foi importante na medida em que me fez
perceber, pela primeira vez, que as cidades poderiam pertencer a quem as habita. E
então, refletir o porquê delas não pertencerem.