05
Interview with Ângela Ferreira
(Interview)
(4 photos / 7187 words)
(Comissioned by Contemporânea)
(2023)
Vistas gerais da exposição na Kunsthalle Recklinghausen.
Portuguese Version
Nos Coruchéus, há um ateliê que tem a porta sempre aberta — como me diz Ângela
Ferreira, quando a contacto para propor uma entrevista. É nesse espaço, entre maquetes,
registros fotográficos e catálogos de exposições passadas,
que as obras que compõem a carreira da artista coexistem e a fazem pensar o futuro. Em horas
que mais pareceram alguns minutos, falamos sobre a escolha das obras que compõem a sua
primeira exposição antológica na Alemanha —
patente até o dia 6 de Agosto na Kunsthalle Recklinghausen —, sobre as maneiras que a sua
própria história moldou a sua prática artística e sobre outras questões que fazem dela uma
artista de relevância para o contexto da arte
contemporânea em Portugal.
Paula Ferreira (P.F.)Como surgiu o convite
para esta exposição antológica na Kunsthalle Recklinghausen, quer falar sobre
isso?
Ângela Ferreira (A.F.)Devo muito
essa exposição ao contributo do curador Nico Anklam. O convite para ela, esta que é a minha
primeira individual na Alemanha, surgiu a partir da vontade dele em fazer uma exposição que,
de alguma maneira, mostrasse a história
do meu trabalho. Que abordasse os trabalhos mais relevantes dentro da minha prática
política, sem necessariamente serem aqueles que marcaram mais a minha vida, e que explorasse
abordagens diferentes sobre o meu corpo de trabalho.
Além disso, Recklinghausen faz parte da antiga zona mineira da Alemanha, portanto há lá um
histórico muito ligado ao assunto. Ao conhecer os trabalhos que fiz sobre a questão das
minas em França, na Alemanha, em Lubumbashi,
Anklam quis que isso estivesse presente de alguma forma. Portanto, a nossa lógica de
pensamento foi começar por Entrer Dans La Mine — por ventura, não é a obra mais marcante da
minha vida, mas é uma obra que me interessa. Em
primeiro lugar, porque é uma escultura que utiliza o edifício como um plinto, é uma espécie
de obra pública, que não está no passeio, pertence ao edifício do museu mas não está dentro
dele, está em cima, e isso para mim era
interessante. E, depois, ela não funciona sozinha, precisa de uma performance que traz dois
cantores congoleses a cantar uma música — dessa vez, interpretada por Shak Shakito e
Claudine Mpolo. A escultura ainda se desdobra
como uma homenagem ao Dan Flavin. Por causa das luzes, ela de dia é uma coisa e, à noite, é
outra.
P.F.E Entrer Dans La Mine também partilha uma
característica muito presente no seu corpo de trabalho,
que é a direta referência a movimentos de levante social ou com forte senso de coletividade,
tal qual em For Mozambique, também presente na exposição. Entretanto, o espaço da
arte contemporânea é o institucional, o
museu, a galeria. Existem algumas fugas possíveis a esse espaço como mencionou, mas são
pontuais. Na maioria das vezes, sente que é um desafio conciliar esse discurso político que
desperta para o coletivismo à produção para
espaços institucionais?
A.F.Sinto que é um desafio imenso… Durante os
primeiros anos da minha prática artística, tive muito pudor em ser artista por causa do
contexto político — estávamos na África do Sul,
durante o Apartheid. E eu tive muitas dúvidas sobre como conciliar o meu gosto por
fazer arte contemporânea, aquela que pensa e que nos ajuda a pensar, e, ao mesmo tempo,
poder representar os grupos com quem estava
a trabalhar. Quando saí das Belas-Artes, estava a trabalhar com um grupo de mulheres que
pintava murais, que fazia cerâmicas, trabalhávamos para o Community Art Project,
fazíamos t-shirts para reuniões políticas, panfletos
e, portanto, era uma atividade visual muito integrada num grupo. Esse era o grande dilema do
início da minha prática. E então, há um momento em que decido que consigo fazer arte
contemporânea desde que o assunto do meu trabalho
seja sobre a comunidade. Mesmo que o trabalho acabe sendo bastante conceptual e até
esotérico — se assim o quiseres chamar —, há um ponto de entrada nele que é pela comunidade,
é acessível a ela e é completamente compreensível
por ela.
P.F.Daí as referências…
A.F.Sim, como o Bob
Dylan, que é uma porta de entrada global. Mas também, por exemplo, Sites and
Services, um dos primeiros trabalhos que fiz,
tem fotografias tiradas em Khayelitsha, nos subúrbios de Cape Town, que estava a ser
construída no início dos anos 90 e era um assunto de grande discussão política dentro do
país e da cidade. Era à beira da autoestrada que
vai do centro ao aeroporto. Portanto, não havia ninguém que olhasse para as fotografias e
não soubesse que aquilo era Sites and Services, em Khayelitsha, Cape Town. Depois,
o que eu faço com as esculturas, que é um
ramificar, ir a um lado mais minimalista, pode não ser totalmente acessível, mas passa a ser
porque o espectador entra primeiro pelas fotografias, por aquilo que conhece e, então, vai
ter de perguntar a si próprio o que é isto
e qual a relação entre as esculturas e as fotografias. Por outro lado, o espectador que vem
de fora e não percebe nada de Khayelitsha, mas percebe de minimalismo, conhece o Donald
Judd, o Flavin, entra pelas esculturas, reconhece
os códigos formais do minimalismo, e vai se perguntar sobre a relação delas com as
fotografias… Quando comecei esse trabalho, nos anos 90, as pessoas me perguntavam qual era o
significado das coisas, e hoje, com o recuo de
trinta anos, consigo perceber, mas na altura eu só sabia dizer que o significado estava
algures entre uma coisa e outra. O que é estranho é que a minha resposta não estava
errada.
O meu problema era como comunicar com
a minha comunidade e como fazer arte dentro do discurso da arte contemporânea, que fosse
válida e ao mesmo tempo acessível. Eu não queria ser uma artista que faz artesanato, mas
também não sou americana e nem europeia nem vivo
dentro daquela reiteração do modernismo europeu. Não me identificava com aqueles homens,
americanos, europeus, minimalistas… Não acreditava na crença deles de que o objeto acaba em
si próprio, que tem o fim em si próprio. Quer
dizer, como poderia eu estar em África a afirmar que os objetos acabam em si próprios? Nessa
altura, comecei a perceber um certo “fascismo” do modernismo europeu, que impunha que aquilo
é que era a linguagem da arte contemporânea.
Eu gosto da linguagem, mas não acredito que isto acabe aí. E, assim, começo a gerir as
comunidades e as pessoas com quem convivo dentro do meu trabalho.
Essa preocupação em
trazer os grupos com quem trabalhei está sempre
no meu espírito de alguma maneira… E uma coisa que não costumo falar, mas que interessa ao
assunto do coletivo, da comunidade: uma das crenças que tínhamos na altura era que não
fazíamos distinções hierárquicas entre aquilo
que era high art e low art, não víamos uma pintora ou uma escultora como
mais credível do que uma ceramista, uma designer ou uma pessoa que fazia roupa. Estávamo-nos
a ensaiar politicamente dentro de uma ideologia
de democracia, de igualdade e de inclusão, portanto era contranatura pensar que ser
artista enquanto escultora era mais importante do que ser designer a fazer panfletos
políticos, ou trabalhar para os sindicatos das
minas a fazer publicações, para nós havia uma espécie de plafond de igualdade entre
as práticas criativas. Chamávamos-nos cultural workers, não éramos pintoras,
escultoras, etc. Era a terminologia política
para afirmar que não pertencíamos à lógica do Apartheid, que tínhamos uma visão muito mais
inclusiva e democrática daquilo que são as práticas culturais.
P.F.É
interessante, porque dá para ver que vem da
sua própria história esta visão. A arte contemporânea, principalmente europeia, tem muito
culto ao indivíduo, ao artista relacionado à genialidade…
A.F.Sim, e
também tem muito que ver com o contexto da tradição
africana, com a ideia do artista, ou da pessoa que faz os artefactos dentro de uma
comunidade: não há esse culto ao génio, está mais integrado à comunidade. As pessoas têm os
seus papéis dentro da estrutura social coletiva
e o artista não é cultuado com essa ideia de genialidade e até esoterismo que há em um
contexto europeu. É claro que estávamos a negociar o fato de sermos africanos e estarmos em
África e termos de resolver o jeito que iríamos
ser dentro daquela sociedade, sendo que Cape Town também não é uma cidade africana
tradicional…
P.F.E vem também desse seu aprendizado dizer que não há
hierarquias entre as media que você utiliza? Entre
a fotografia e a escultura, por exemplo, e a primeira poder ser, na verdade, uma extensão da
segunda? Quero dizer, isso interessa porque as categorias dentro da arte contemporânea já
não são mais tão rígidas quanto um dia foram,
mas quando você começou elas ainda o eram, especialmente no contexto europeu. A própria
fotografia atingiu o patamar de arte há relativamente pouco tempo…
Vistas gerais da exposição na Kunsthalle Recklinghausen.
A.F.Vem completamente desse aprendizagem. Na altura, eu convivia com muitos
fotógrafos que tiveram um papel político importante na África do Sul, eram as pessoas que
estavam a fotografar o mal que o sistema do Apartheid estava a fazer e que mandavam
para fora para o resto do mundo ver. Portanto, eram pessoas esteticamente muito sofisticadas
e que, ao mesmo tempo, tiveram um papel importantíssimo dentro da luta contra o
Apartheid.
Inclusive, um dos pintores dos murais[1] era, na verdade, fotógrafo, então para
nós essa hierarquia não existia. Quando eu comecei a perceber que, no circuito ocidental,
nos anos 90, a fotografia é integrada, é trazida
para o discurso da arte contemporânea, lembro-me de pensar: isto não é nenhuma novidade para
mim. Ainda bem que toda gente agora concorda, mas nunca me tinha ocorrido que não fosse
assim… Por isso, o que tu dizes é verdade,
porque as nossas interações na África do Sul durante os anos noventa foram extremamente
educativas, marcantes e bem orientadas. Embora, na altura, não soubéssemos ainda disso, em
retrospectiva se percebe que já estávamos a
pensar esses problemas da arte contemporânea.
P.F.Quando fala sobre essa
visão que contrariava os discursos ocidentais da arte contemporânea, introduz uma questão
pertinente. O seu trabalho lida com problemas
bastante delicados, como o colonialismo e as suas consequências, mas, apesar disso, é muito
bem aceito dentro de Portugal e de outros países europeus. Arrisco dizer que isso se deve,
em partes, por você sempre ter trabalhado
dentro dos códigos formais da arte contemporânea europeia, acha que faz sentido colocar isso
nesses termos?
A.F.Como disse, a minha intenção sempre foi que se
pudesse entrar por aqui ou entrar por ali. Eu
não sou o público, não posso falar como uma pessoa inocente porque não o sou, mas penso que
isso seja muito possível, sim. Mas há duas coisas que talvez seja preciso nós, em 2023,
também falarmos: uma das razões que me trouxe
para Portugal, por exemplo, tem que ver com a minha própria tentativa de entender a relação
mal resolvida entre África e Europa. Muito cedo percebi que, apesar de o colonialismo ter
acabado oficialmente, essa relação está mal
resolvida. Sempre pensei que procurar entender onde as coisas tinham corrido mal ou como
ainda correm mal poderia ser um assunto no meu trabalho, portanto isso está muitas vezes
presente. Por outro lado, apesar de achar que
meu trabalho formalmente é fácil para um público europeu, também acho que, de dez ou quinze
anos para cá, houve uma disseminação de artistas africanos para cá e, com isso, a vinda
também de outras linguagens diferentes que
permitiram uma abertura muito grande do público europeu e ocidental. A ideia de que “isto é
que a linguagem aceitável para seres artista, inteligente, de primeira linha” já não é
definida de forma tão autocrática, nem do ponto
de vista museológico, nem do ponto de vista comercial, e, portanto, acho que esses tabus, de
certa maneira, felizmente estão a desconstruir-se. Não sei se isso facilita a recepção do
meu trabalho ou não, mas estou muito consciente
de que estamos muito mais disponíveis para outras linguagens.
P.F.E
então, sendo essa a sua primeira exposição antológica na Alemanha, como percebeu a relação
entre o público e a sua obra? Há diferenças
substanciais entre a maneira que o público alemão a recebe e o
português?
A.F.Muito. É estranho, mas há. E não experimentei isso só na
Alemanha, mas também em França. Em Portugal, há dificuldades emocionais
— não sei se todos os países têm esse problema, mas Portugal tem. Há certos assuntos em que
tocas e não vais para frente… Eu acho que ainda não nos focamos em tentar digerir certas
coisas por aqui. O que eu noto no meu trabalho
é que, às vezes, quando abordo certos assuntos, por exemplo em A Tendency to
Forget, há uma reação fortíssima. As pessoas sentiram-se ofendidas por eu ousar
apontar alguns problemas metodológicos na abordagem colonial
dos etnógrafos Jorge e Margot Dias. Quando exponho na Alemanha, não tenho esse problema
porque há a distância. Os alemães têm a sua própria História e eles entendem o sentido de
trauma, de culpa e de carregar o peso da História
de maneira muito real — o que faz com que haja uma empatia, distanciada, mas real.
Entrer Dans La Mine, por exemplo, foi muito mais fácil para o público, pois há uma
proximidade com as histórias das minas. Há lá muitas
pessoas cujos tios, avós e outros familiares eram mineiros, portanto quando eles veem esse
trabalho, há uma empatia mais direta — inclusive, há um coro dos mineiros da cidade que vai
cantar a propósito da exposição.
Da
mesma forma, ao apresentar Talk Tower For Ingrid Jonker, houve uma empatia imediata
por causa da história dessa poetisa — cujo pai era o chefe da censura política na África do
Sul do Apartheid. Na frase: “quando
ela conseguiu perceber que não poderia haver futuro para ela em seu país, suicidou-se”,
consegui perceber na audiência essa reação imediata.
Mas isso é agora. No início,
quando comecei a trabalhar, havia pouca gente
que entendia o meu trabalho, os anos 90 foram muito sozinhos. As pessoas aqui não tinham
lido nada pós-colonial, não tinham ferramentas teóricas, estavam muito orientados para uma
visão europeia. E eu já trazia as ferramentas
conceptuais, do orientalismo ao pós-colonialismo. Havia, na altura, dois ou três curadores —
e aí acho que tens razão em dizer que o fato da linguagem formal do meu trabalho ser mais
familiar a eles ajudou bastante. Lembro-me
que quando mostrei Sites and Services pela primeira vez em Lisboa, em 92, alguém escreveu:
“é pena que uma escultora tão capaz estrague o seu projeto com as fotografias que mostra
junto”. Esperavam uma coisa muito formalista,
mas eu não levo a mal. Em 98, fiz uma performance, Untitled 1998, e depois escrevi
um texto chamado Dar a Mão à Palmatória, em que escrevi — “não acredito na arte
formalista. Arte só por si, para ser bela,
para mim, não tem valor nenhum. Acredito que tem de se pôr conceitos e ideias dentro da
arte. Mas, para não me chatearem mais, fiz uma obra que não tem título. Aqui têm, entendam
se quiserem.”—. Era eu a fazer ginástica no
Estádio Nacional, que é um estádio da altura do fascismo. Esses foram os anos 90:
interessantes, mas bastante solitários…
P.F.Rádio Voz da
Liberdade, que integra a exposição, ajuda a desconstruir
uma mitologia portuguesa sobre os movimentos responsáveis pela dissolução do Estado Novo e,
por consequência, pelo 25 de Abril, ao apontar para uma contribuição fundamental vinda de
uma estação de rádio da Argélia. Essa espécie
de revisão da História é algo que pretende prosseguir nos próximos
trabalhos?
A.F.Esse trabalho está muito relacionado àquilo que me
interessa nesse momento, que é procurar modelos ou histórias de coisas
que contradigam essa visão de que Portugal resolveu tudo sozinho, ou de que a Europa é que
mostra à África como há de resolver os problemas, é que dá os protótipos do desenvolvimento…
interessa-me olhar para os problemas entre
a Europa e a África não apenas em trabalhos de denúncia, como em A Tendency to Forget,
Amnésia, etc. Agora, quero procurar casos em que a África seja um exemplo de
libertação, de ensinamento. Rádio Voz da Liberdade vem daí… Esse é o género de
história que me interessa no momento.
P.F.Ou seja, a realidade a
contradizer as narrativas hegemônicas…
A.F.Sim, e também procurar a
complexidade das situações,
porque nada é completamente linear. As narrativas grandes estão na mesa, toda gente as tem.
A mim interessa uma coisa um pouco diferente.
P.F.Quando falamos em
narrativas hegemônicas, há outra questão que
é o ato de arquivar enquanto instrumento de poder — ação que foi e vem sendo praticada pelos
países europeus e que beneficia até hoje muitos museus e coleções que possuem um espólio
imenso oriundo do colonialismo. Precisamos
pensar que, em muitos casos, a Europa resguardar para si o direito de arquivar a História
dos Outros implica que esses Outros não tenham direitos sobre a sua própria História. O seu
trabalho, muitas vezes, coloca isso em causa.
Qual o papel que você acredita que cabe aos artistas nesse debate?
A.F.É
uma questão delicada, mas não mais do que devolver espólios artísticos, por exemplo. Acho
que estamos no início do mundo da restituição,
essa discussão está na mesa — não sei até que ponto está a acontecer realmente, já houve
algumas devoluções, alguns países já debatem o assunto melhor do que outros, mas o debate
existe e não acho que vá voltar atrás. O caso
do arquivo é mais complexo, porque é mais ilusivo. Um objeto existe, tem peso, está num
museu, é material, já um arquivo pode ser uma coisa escondida, menos ou mais acessível, a
depender… Mas para mim, não há o que discutir.
As coisas que não pertencem a um lugar não deveriam lá estar. Não sou muito tolerante nessa
questão, as coisas devem ser devolvidas. O arquivar como forma de poder decorreu de os
países europeus, para além de estarem a dominar
outros países e, portanto, terem capacidade de extração de materiais, também tinham os
recursos financeiros para arquivar e mantê-los. Quem é dono dos arquivos, é dono da
História.
Mas há dois assuntos aqui: uma coisa
é onde os arquivos estão e outra coisa é a acessibilidade deles. Eu também acho que, se os
arquivos forem devolvidos aos lugares que eles pertencem e não estiverem acessíveis às
pessoas, torna a situação bastante complicada.
É preciso lembrar do que diz Achille Mbembe: se não mexes nos arquivos, eles estão mortos, é
como se estivessem enterrados numa sepultura e a História não se move, está fixa. Se ninguém
for lá para mexer nos arquivos, vasculhá-los
e ressignificá-los, eles ficam moribundos, a História não se altera, não há crítica. E, por
isso, acho que o arquivo não só deve pertencer ao lugar onde pertence, mas tem de estar
acessível, porque um arquivo não acessível
é pior ainda do que um arquivo no lugar errado.
P.F.Ao rememorar a sua
trajetória, a propósito dessa exposição antológica, houve oportunidade para mudar ou
reconstruir relações com o seu próprio trabalho?
A.F.Sim,
claro. Por exemplo, nessa exposição, Rádio Voz da Liberdade foi dividido em dois
andares. Originalmente, uma das esculturas tem seis metros de altura, o que é mais que o pé
direito do espaço da Kunsthalle, mas o curador
insistiu em mostrá-la. Então dividimos: essa escultura aparece no último andar sem a torre
que originalmente a sustenta, e a parte de baixo da estrutura aparece no andar inferior.
Portanto, quando perguntaste, antes de começarmos
a entrevista, se a escolha das obras tinha que ver com o espaço, a resposta era sim e não…
Eu sou flexível sobre mudar os formatos dos trabalhos enquanto eles ainda são meus, a
deixá-los abertos para mudarem ou serem apresentados
de novas maneiras. Nessas exposições, tens o privilégio de recriar as relações entre os
trabalhos. Outro exemplo é a escultura de Realistic Manifesto, que me fez pensar numa
proximidade sua com Double Sided, trabalhos feitos
em alturas diferentes da minha vida — sendo o primeiro, ao mesmo tempo, o mais antigo e um
dos mais recentes trabalhos meus.
P.F.Parece que os trabalhos vão se
prolongando uns nos outros…
A.F.Sim.
E construímos a exposição a pensar que o andar mais alto seria o das torres de rádio, com
Rádio Voz da Liberdade, como se começássemos de forma mais aérea e fossemos
descendo à terra até chegar a Sites and Services.
No andar mediano, há a obra For Mozambique, que é uma obra sonora que preenche o
espaço com o seu som.
P.F.A ideia de utopia é muito presente no seu
trabalho. Acha que ela é necessária para seguir
fazendo arte contemporânea?
A.F.Para mim, é. É a ideia de estar a
trabalhar para qualquer coisa, para um fim. Não tens necessariamente de chegar a esse fim,
mas estás a trabalhar para isso, para algo além
de ti. Só fazer coisas belas é fácil. Eu gosto da ideia de que estou a caminhar em direcção
a algo que é melhor do que aquilo que temos. E é por isso também que dou aulas. Dei a vida
inteira e continuo a dar, tem a ver com
a partilha, com a comunicação com as pessoas, com investimento… São muitos anos a dar aulas
e, para mim, é muito importante essa ideia de construir um mundo melhor. Podes chamar
utopia. Talvez, por isso, muitas das minhas obras
tenham essa palavra no título…
[1] Aqui, Ângela se refere aos murais que pintava com o grupo Community Art Project e que, mais tarde, originou a obra Pan African Unity Mural, exposta em 2018 no MAAT.
Exhibition view at Kunsthalle Recklinghausen.
English Version
In the Coruchéus, there is a studio which the door is always open – as Ângela
Ferreira tells me when I contact her to propose an interview. It is in this space, amid
models, photographic records, and catalogs of past exhibitions,
that the works that make up the artist's career coexist and make her contemplate the past
and the future. In hours that felt more like minutes, we discussed the selection of works
for her first anthological exhibition in Germany
– current until August 6th at Kunsthalle Recklinghausen. We talked about the ways in which
her own history has shaped her artistic practice and other issues that make her an artist of
significance in the context of contemporary
art in Portugal.
Paula Ferreira (P.F.)How did the invitation for this
anthological exhibition at Kunsthalle Recklinghausen come about? Would you like to talk
about it?
Ângela Ferreira (A.F.)I
owe this exhibition a lot to the contribution of curator Nico Anklam. The invitation for my
first solo exhibition in Germany came from his desire to create an exhibition that, in some
way, would showcase the history of my work.
It should address the most relevant works within my political practice, without necessarily
being the ones that have marked my life the most, and explore different approaches to my
body of work. Moreover, Recklinghausen is
part of the former mining region of Germany, so there's a strong historical connection to
the subject. After getting to know the works I did about mining issues in France, South
Africa, and the Democratic Republic of Congo,
Anklam wanted that to be somehow present. Therefore, our line of thought was to start with
Entrer Dans La Mine — perhaps it's not the most significant work of my life, but it's a work
that interests me. Firstly, because it's
a sculpture that uses the building as a plinth, a kind of public work that's not on the
sidewalk, it belongs to the museum building but is not inside it, it's on the roof, and that
was interesting to me. Then, it doesn't function
alone; it requires a performance that brings two Congolese singers to perform a song — this
time performed by Shak Shakito and Claudine Mpolo. The sculpture also unfolds as a tribute
to Dan Flavin. Due to the lights, it's one
thing during the day and another at night.
P.F.Entrer Dans La Mine also
shares a characteristic that is very present in your body of work, which is the direct
reference to social uprisings or strong senses
of collectivity, as seen in For Mozambique, also in the exhibition. However, the space of
contemporary art is institutional, in the museum, the gallery. There are some possible
escapes from this space, as you mentioned, but
they are sporadic. Most of the time, do you feel it's a challenge to reconcile this
political discourse that awakens collectivism with production for institutional
spaces?
A.F.I feel it's an immense challenge...
During the early years of my artistic practice, I had a lot of reluctance to be an artist
because of the political context — we were in South Africa during apartheid. I had many
doubts about how to reconcile my taste for making
contemporary art, the kind that thinks and helps us think, while also being able to
represent the groups I was working with. When I left the Fine Arts, I was working with a
group of women who painted murals, made ceramics,
worked for the Community Art Project, made T-shirts for political meetings, pamphlets, and
thus, it was a highly visual activity integrated into a group. That was the main dilemma of
the beginning of my practice. And then there
was a moment when I decided that I could do contemporary art as long as the subject of my
work was about the community. Even if the work ends up being quite conceptual and even
esoteric, if you want to call it that, there is
an entry point for the community, it's accessible to them and completely understandable by
them.
P.F.Hence the references…
A.F.Yes, like Bob
Dylan, who is a global entry point. But also,
for example, Sites and Services, one of the first works I did, has photographs taken in
Khayelitsha, in the suburbs of Cape Town, which was under construction in the early '90s and
was a subject of great political discussion
within the country and the city. It was on the edge of the highway that goes from the city
center to the airport. So, there was no one who looked at the photographs and didn't know
that it was Sites and Services in Khayelitsha,
Cape Town. Then, what I do with the sculptures, which is branching out, moving towards a
more minimalist side, may not be entirely accessible, but it becomes so because the viewer
first enters through the photographs, through
what they know, and then they have to ask themselves what this is and what the relationship
is between the sculptures and the photographs. On the other hand, the viewer who comes from
the outside and doesn't understand anything
about Khayelitsha but understands minimalism recognizes Donald Judd, Flavin, enters through
the sculptures, recognizes the formal codes of minimalism, and wonders about their
relationship with the photographs... When I started
this work in the '90s, people asked me what the meaning of things was, and today, with a
thirty-year perspective, I can understand it, but at the time, all I knew was that the
meaning was somewhere between one thing and another.
What's strange is that my answer wasn't wrong.
My problem was how to communicate with
my community and how to make art, within the discourse of contemporary art, that was valid
and accessible at the same time. I didn't
want to be a craft artist, but I'm not American, European, or living within that reiteration
of European modernism. I didn't identify with those men, Americans, Europeans,
minimalists... I didn't believe in their belief that
the object ends in itself, that it has its end in itself. I mean, how could I be in Africa
stating that objects end in themselves? At that time, I began to understand a certain
dogmatism of European and Western modernism that
imposed that this was the language of contemporary art. I like the language, but I don't
believe it ends there. And so, I start to manage the communities and the people I live with
within my work.
This concern to bring
the groups I worked with is always in my mind in some way... And one thing I don't usually
talk about, but that is relevant to the subject of the collective, of the community: one of
the beliefs we had at the time was that
we didn't make hierarchical distinctions between what was high art and low art; we didn't
see a painter or a sculptor as more credible than a ceramicist, a designer, or someone who
made clothing. We were rehearsing ourselves
politically within an ideology of democracy, equality, and inclusion, so it was against
nature to think that being an artist as a sculptor was more important than being a designer
making political pamphlets, or working for
mining unions to make publications. For us, there was a kind of equality threshold among
creative practices. We called ourselves cultural workers; we weren't painters, sculptors,
etc. It was the political terminology to assert
that we didn't belong to the logic of apartheid, that we had a much more inclusive and
democratic view of cultural practices.
P.F.It’s interesting because one
can see that this perspective comes from your
own history. Contemporary art, especially European, often places a strong emphasis on the
individual and the artist associated with genius...
A.F.Yes, and it also
has a lot to do with the context of African
tradition, with the idea of the artist or the person who creates artifacts within a
community: there isn't that cult of genius, it's more integrated into the community. People
have their roles within the collective social structure,
and the artist is not venerated with the idea of genius and esotericism that exists in a
European context. Of course, we were negotiating the fact that we were Africans in Africa
and had to figure out how we would fit into
that society, especially considering that Cape Town is not a traditional African
city…
P.F.Does this also come from your realization that there are no
hierarchies between the mediums you use? Between photography
and sculpture, for example, with the former possibly being an extension of the latter? I
mean, this is interesting because the categories within contemporary art are no longer as
rigid as they once were, but when you started,
they still were, especially in the European context. Photography only recently achieved the
status of art…
Exhibition view at Kunsthalle Recklinghausen.