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Perfil: João Bragança Gil
(Art Critic)
(4 photos / 2898 words)
(Comissioned by Contemporânea)
(2023)
Paraísos Artificiais (2023) com Beatriz Medori. Curadoria de Sofia Marçal, no MUHNAC — Museu de História Natural e das Ciências.
Portuguese Version
Um filme seccionado se desenvolve diante do espectador, em uma sala onde os poucos focos de
iluminação nascem junto às seções que o compõem. Nesse espaço retangular penumbroso, uma
instalação tripartida se constitui por três sucessivos
momentos: Paraíso, Paraíso Perdido e Paraísos Artificiais — o último, homônimo da
segunda exposição individual de João Bragança Gil, realizada no Museu Nacional de História
Natural e da Ciência. Em cada um, está rememorada
a estrutura primordial do cinema: o diorama.
É nesse pequeno cosmo, permeado pela
discreta presença da luz, que os dois primeiros momentos, Paraíso e Paraíso Perdido,
inauguram uma dialética entre o artifício e a construção
cultural de sentido. A partir dos títulos dados aos capítulos do último filme realizado por
Murnau, Tabu, os dioramas são exemplares da metodologia empregue por João Gil.
Nela, dificilmente se percebem acasos em relação
à eleição por um suporte: quando, na obra Sem Escape, é desnudado o interior de um
computador e o seu bastidor de servidor[1] serve de pedestal para um ecrã que
reproduz, em loop, um vídeo de arquivo
no qual se vê uma perseguição a duas zebras em uma savana, é proposital que imagem em
movimento e aparato técnico, juntos, constituam uma mesma escultura instalativa. Nesse
exemplo, a obra não se restringe à apropriação do
filme de arquivo, mas é essencial, para o seu argumento, que os meios para a reprodução do
mesmo sejam também visibilizados.
Talvez de maneira menos explícita, as duas obras
que constituem o terceiro diorama também exercem
a função de evidenciar os mecanismos que lhes permitem ser criadas. Ao centro da parede mais
longínqua da sala retangular, uma projeção em loop de planos fixos seduzem o olhar
expectante: por trás de uma nebulosa cortina
de fumaça colorida, repousa abandonada no chão uma bola de discoteca construída por pequenos
espelhos. A seguir, irrompem imagens de plantas tropicais que se iluminam por raios de luz
azuis, vermelhos, verdes, roxos, em um
jogo de cores que lhes empresta um caráter muito pouco natural, ao passo que o próximo plano
surge como se fosse um zoom out e permite que se vejam os troncos das árvores que
as sustentam, dentre os quais repousa,
na terra, um ventilador metálico. A todo o momento, o sinestésico ambiente do vídeo é
realçado pelo cenário pirotécnico. A filmagem acompanha uma “trilha sonora” composta por
João Gil: uma desconstrução, ou um prolongamento
na temporalidade, do poema sinfônico de Luís de Freitas, de 1913. Ao invés de posicionar
discretamente os alto falantes que acompanham a projeção, o artista os repousa em frente à
parede, em uma escolha deliberada por sublinhar
que aquilo que se vê e se ouve é uma construção.
Há, discretamente presente, outra
evidência da intenção do artista de deixar sobressair o artifício na obra. Por terem
durações díspares entre si, o som do poema sinfônico
e o vídeo completam ciclos anacrônicos — o que desloca Paraísos Artificiais em
relação à tradição cinematográfica e permite que, no curso do tempo, infinitos encontros
entre som e imagem sejam possíveis de se estabelecer
pela demora do espectador diante do diorama e pela associação, em sua experiência
individual, daquilo que se vê àquilo que se ouve. Tal oscilação de temporalidades, aliada à
exibição do aparato tecnológico na escultura, vertem
para um pensamento brechtiano, frequentemente presente no trabalho do artista, ao inibirem a
possibilidade de interpretações acríticas ou catárticas do mesmo.
Esses exemplos se
destacam por demonstrarem um especial poder
de síntese de problemáticas presentes no cerne do trabalho de João Gil, as quais também
acabam por caracterizar a sua produção para além da exposição Paraísos Artificiais.
Ao debruçar sobre o percurso que Bragança
Gil vem trilhando, é possível perceber como elas evoluem e, de certa forma, se apresentam
enquanto preocupações constantes. Talvez sintomáticas de um trabalho que é tangencialmente
referencial, algumas dessas questões são reminescentes
e, em certa medida, integram debates já conhecidos pela arte contemporânea. O que importa
destacar sobre João Gil, entretanto, não é aonde se propõe chegar ao debater tais ideias,
mas antes os meandros dos caminhos que ele
percorre ao longo de seu pensamento e de seu gesto artísticos.
Estudo do Meio (2023), Exposição Coletiva organizada pela PURGA com curadoria de Isabel Cordovil e Rudi Brito nas Carpintarias de S. Lázaro, Lisboa.
O Artista enquanto Arqueólogo de
Ideias
João Gil é capaz de, em um livre vagar de ideias, discorrer linearmente
sobre a reflexividade de seu trabalho. Em seu ateliê, livros se encontram com pesquisas e
artigos acadêmicos
impressos e organizados em pastas, fotografias de sua autoria catalogadas e mapas mentais
presos às paredes como se à espera do momento em que lhe dirão algo. Está ali presente uma
espécie de zeitgeist dos trabalhos
já expostos, daqueles atualmente em desenvolvimento e de outros ainda em estágio
embrionário. É esse o espaço que o artista utiliza para pensar as questões que o tocam: um
mezanino em um ateliê coletivo em Marvila, de alguns
metros quadrados, preenchido e organizado enquanto reflexo do seu próprio
pensamento.
Foi também nesse espaço, que uma imagem se revelou clarividente: em sua
prática, o artista se dedica a, pacientemente, tecer as poucas
“franjas da tapeçaria da existência, tal como o esquecimento a teceu”[2] —
pegando emprestada tão poética e pictórica passagem descrita por Walter Benjamin. É,
portanto, tal tapeçaria o início de toda trama que possa
nascer do seu trabalho. E, com o pensamento afiado, se vão desfazendo os nós das linhas,
organizando o emaranhado de ideias e conceitos que pairam sobre o mundo social dos homens —
apenas para depois voltar a desorganizá-los.
O artista enquanto arqueólogo é aquele que se dedica a esse ofício. Que, no cerne de seu
trabalho, cultiva o empenho em desvelar todas as camadas de interpretação e significação que
uma ideia acumula sobre si através do Tempo
e da História.
Também não por acaso, frequentemente o meio escolhido para essa
“escavação” das ideias é através das imagens fotográficas e da utilização dos elementos que
constituem o cinema, ainda que desconstruídos
(a trilha sonora e a imagem em movimento, tal qual está explícito em Paraísos
Artificiais). Ao elucubrar sobre essa predileção, é curioso que o artista a situe
em um ponto de convergência entre duas teses antagônicas:
por um lado, há uma crença na objetividade desse meio que quase daria razão ao realismo
fotográfico de André Bazin[3], e, por outro, é uma escolha feita com plena
consciência da subjetividade inerente à imagem fotográfica
e da sua apropriação da realidade, como definida por Susan Sontag[4]. O que
deriva desse entendimento ambíguo sobre a natureza da Fotografia é bastante singular e
acrescenta um véu de fascínio para interpretar trabalhos
seus, como, por exemplo, Ways of Remembering (2022) e Anticline
(2020).
No primeiro, cinco planos fotográficos se alinham na esquina de uma parede.
Nas imagens, o movimento que forma uma onda no mar
está registrado sequencialmente — quase a transpor visualmente aquilo que Walter Benjamin
chamaria de “inconsciente ótico” da Fotografia. Como diria o filósofo, podemos perceber a
onda a bater nas pedras, “ainda que em grandes
traços”, mas não percebemos a natureza do seu movimento “na exata fração de segundo” em que
ela bate nas pedras[5]. Um olhar menos atencioso poderia enxergar no exercício
sequencial realizado por João Gil uma certa
ameaça de tropeçar no início da exploração fotográfica de Muybridges. Porém, é
preciso criar relações entre essa obra e o resto do seu corpo de trabalho para perceber que,
antes da mera observação e fragmentação de
um movimento, a sua atenção está principalmente dedicada àquilo que ocorre entre uma imagem
e a outra — como se o vazio daquilo que acontece entre dois momentos visíveis tivesse mais a
nos confessar do que aquilo que está evidentemente
presente nas imagens.
Já em Anticline, uma fabricada objetividade da câmera
se apresenta no momento em que o artista escolhe filmar uma narrativa situada ao redor de
uma pedreira no Alentejo a partir de uma
perspectiva a qual ele próprio chama “pós-humana”. Trata-se de posicionar o referente na
pedra, no maquinário e na paisagem, destituindo o privilégio do olhar humano enquanto
referência na criação das imagens. Curiosamente,
o que se sobressai nesse processo são justamente as ideias que só fazem sentido a partir da
experiência humana: a violência contida na exploração da terra e dos recursos naturais, que
é análoga àquela contida na exploração
da mão de obra e dos recursos humanos.
Por fim, sobre o trabalho de João Bragança Gil
é preciso sublinhar que há uma inegável força poética em, propositalmente, perseguir
caminhos tão ambíguos. Em imergir-se em pensamentos
reflexivos e procurar, nos interstícios das ideias, o seu desnudar. Como se, em contínuas
ondulações, brotasse do chão de seu pensamento imagens que chamam por outras, e depois por
outras, e depois por outras — naquilo que,
talvez, seja uma mesma obra a transmutar-se em muitas.
[1] Um bastidor de servidor é uma estrutura metálica projetada para acomodar e
organizar equipamentos de tecnologia, como servidores, switches de rede, unidades de
armazenamento, entre outros dispositivos relacionados.
[2]Walter
Benjamin, “A Imagem de Proust”, 1929.
[3] André Bazin, “Ontologia da Imagem
Fotográfica”, 1945-1958.
[4] Susan Sontag, “Sobre a Fotografia”, 1977.
[5] Adaptação do trecho: “Percebemos, em geral, o movimento de um homem que
caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de
segundo em que ele dá um passo.”, de Walter
Benjamin em “Pequena História da Fotografia”.
Estudo do Meio (2023), Collective Exhibition organized by PURGA curated by Isabel Cordovil and Rudi Brito at Carpintarias de S. Lázaro, Lisbon.
English Version
A segmented film unfolds before the spectator in a room where the few points of light arise
from it. In this dim rectangular space, a tripartite installation consists of three
successive moments: Paradise, Paradise Lost, and Artificial
Paradises – the last one, the namesake of João Bragança Gil's second solo exhibition, held
at the National Museum of Natural History and Science. In each of these, the primordial
structure of cinema is remembered: the diorama.
It
is in this small cosmos, permeated by the discreet presence of light, that the first two
moments, Paradise and Paradise Lost, inaugurate a dialectic between artifice and the
cultural construction of meaning. Taking the titles
of the chapters from Murnau's last film, “Tabu”, the dioramas exemplify the methodology
employed by João Gil. It's rare to perceive any coincidences in the choice of a medium:
when, in the work “Sem Escape”, the interior of
a computer is exposed, and its server[1] rack serves as a pedestal for a screen
that plays, in a loop, an archival video depicting a chase of two zebras on a savanna, it is
deliberate that the moving image and the
technical apparatus together constitute a single sculptural installation. In this example,
the work goes beyond the appropriation of the archival film; it is essential for its
argument that the means of reproducing it are also
made visible.
Perhaps in a less explicit manner, the two works that make up the third
diorama also serve to highlight the mechanisms that allow them to be created. In the center
of the far wall of the rectangular room,
a looped projection of fixed shots captivates the expectant gaze: behind a nebulous curtain
of colored smoke, a disco ball constructed from small mirrors lies abandoned on the floor.
Next, images of tropical plants illuminated
by blue, red, green, and purple rays of light burst forth, lending them a highly unnatural
quality, while the next shot appears as a zoom-out, revealing the tree trunks that support
them, among which a metallic fan rests on
the ground. Throughout, the synesthetic atmosphere of the video is enhanced by the
pyrotechnic setting. The footage is accompanied by a soundtrack composed by João Gil: a
deconstruction, or an extension in time, of Luís de
Freitas' symphonic poem from 1913. Instead of discreetly positioning the speakers that
accompany the projection, the artist places them in front of the wall, deliberately
underlining that what is seen and heard is a construction.
Another
indication of the artist's intention to emphasize artifice in the work is discreetly
present. Due to their disparate durations, the sound of the symphonic poem and the video
complete anachronistic cycles – which shifts “Paraísos
Artificiais” away from cinematic tradition and allows for infinite intersections between
sound and image to be established over time, depending on the viewer's duration in front of
the diorama and their individual experience,
linking what is seen to what is heard. This temporal oscillation, coupled with the display
of the technological apparatus in the sculpture, leads to a Brechtian thought, often present
in the artist's work, inhibiting the possibility
of uncritical or cathartic interpretations.
These examples stand out for
demonstrating a special power of synthesis of the issues at the core of João Gil's work,
which also characterize his production beyond the “Paraísos
Artificiais” exhibition. Examining the path the artist has been following, it becomes
apparent how these issues evolve and, to some extent, become constant concerns. Perhaps
symptomatic of work that is tangentially referential,
some of these questions are reminiscent and, to a certain extent, integrate debates already
known in contemporary art. What is important to emphasize about João Gil, however, is not
where he proposes to arrive when discussing
these ideas, but rather the intricacies of the paths he traverses through his artistic
thought and gesture.
Estudo do Meio (2023), Collective Exhibition organized by PURGA curated by Isabel Cordovil and Rudi Brito at Carpintarias de S. Lázaro, Lisbon.