03
Perfil: Musa Paradisiaca
(Art Critic)
(4 photos / 2487 words)
(Comissioned by Contemporânea)
(2023)
Vistas da intervenção "Solar Boat" na BoCA Bienal, 2021.
Portuguese Version
I
Desde um Sol artificial, uma fonte de luz e
calor concentrados, o tempo dentro da sala escura é marcado por um cíclico apagar e
reacender — uma simulação da natureza intermitente do curso de um dia. Ao redor, qualquer
materialidade se dissipa, abandonando o corpo em um negro vácuo e, assim, tornando esse Sol
a única referência espacial possível. Como se presenciássemos um momento para além do
futuro, no qual poucos resquícios de humanidade
persistiram, tal Sol se transmuta em uma estrutura metálica de presença opressora e divide a
origem de sua luz, antes única, em pequenas esferas, como réplicas de si mesma. No fundo
oposto da sala onde o novo Sol ostensivamente
se faz presente, três objetos feitos para a escuta e reprodução sonoras possibilitam a
perturbação do sepulcral silêncio. Pela primeira vez desde que adentramos o espaço, alguma
presença familiar é reconhecível: um adulto e
uma criança engajam em uma conversa sem perceptível linearidade ou nexo, mas que,
entretanto, possui um evidente caráter dialógico. Imersos no soturno vazio desse espaço
espetacularmente construído, perdemos a capacidade de
distinguir o início do fim, o surgimento do desaparecimento da linguagem, o passado do
presente e o presente do futuro.
A ambiguidade desse estado não é fruto do acaso, mas
característica desenvolvida ao longo de todo
um percurso e fulcral ao ímpeto criador da dupla que tem assinado trabalhos sob a insígnia
de Musa Paradisiaca desde 2010. Em Solar, exposição inaugurada no último mês de
Maio na Appleton [Box], ela é, entretanto,
levada a certo extremo. Talvez seja essa uma consequência de processos que, costumeiramente,
envolvem a participação ativa de muitas pessoas que colaboram com a dupla composta por
Eduardo Guerra e Miguel Ferrão. Especificamente
nessa exposição, a curadora Claudia Pestana foi uma peça fundamental ao puzzle
criativo responsável pela reapropriação de Solar Boat — uma experiência limítrofe entre
performance e happening realizada no âmbito
da bienal BoCA, em 2021, na qual a mesma instalação sonora foi apresentada ao longo de uma
viagem em um barco movido à energia solar por uma lagoa em Ria Formosa, em Faro,
Algarve.
No percurso de deslocamento físico
e conceitual da obra, desde a ampla e idílica paisagem algarvia até o white cube da
galeria, a representação da presença solar — assim como o próprio entendimento dessa palavra
— se transmutou do abstracionismo à materialidade;
ao passo que a espacialidade seguiu a contramão, se desprendendo por completo de qualquer
referencial figurativo ou material e encontrando no negro vácuo uma nova maneira de existir.
Em Solar, as únicas imagens que
se revelam são aquelas que o pensamento, em conversa com a instalação sonora, forja no
imaginário — tendo elas lastro em uma percepção dialógica da obra ou não. Tal interação que
assim se cria configura uma hipótese, intrinsicamente
relacionada à prática da Musa Paradisiaca: a de uma protolinguagem nascida nos interstícios
dos sentidos, das palavras, das imagens e de tudo aquilo que configura o
sensível.
Esse exercício, ao qual poderíamos referenciar
enquanto uma espécie de abstração, reavaliação ou, ainda, desarticulação da linguagem e da
fala, tem sido recorrente no percurso da dupla de artistas. Junto à ideia de colaboração no
processo criativo, talvez seja aquilo que
mais caracteriza o seu trabalho — mesmo quando as imagens o povoavam com mais veemência,
principalmente através da escultura, mas também do vídeo, eram as palavras a aparente
preocupação primária e, especificamente, o que acontecia
quando elas encontravam umas às outras.
Como é sugerido no texto Silogismos em
Movimento, escrito por Sofia Lemos e publicado a propósito do catálogo Visões
do Mal-entendido, sobre o trabalho da dupla,
parte daquilo que é objeto de estudo do campo da linguística (a origem da linguagem) pode
facilmente ser mal-interpretada e subjugada quando analisada sob uma perspectiva que
privilegie demasiadamente uma visão de mundo pautada
pelo racionalismo europeu. Contra tal subjugação, podemos pensar que a valorização, ainda
que antes no campo artístico do que na teoria linguística, do sensível na concepção da
linguagem possa emergir como uma possibilidade.
O que, talvez, significaria compreender a linguagem a partir das relações capazes de gerar
subjetividades, sejam elas entre uma pessoa e outra ou entre o humano e o não-humano. Tal
ideia irrompe com uma força sutil no trabalho
da Musa, mesmo quando ainda em um estágio embrionário, e permeia a sua produção de maneira
constante.
Vistas da intervenção "Solar Boat" na BoCA Bienal, 2021.
II
Ao olhar para os últimos treze anos de trabalho
desenvolvido pela dupla de artistas e por seus colaboradores, tal interação entre
sensibilidades parecia quase sempre exigir ser manifestada em forma de imagens. Nos
projetos anteriores e até a exposição The I of the Beeholder (2020), na Fundação
Carmona e Costa, havia uma predominância da escultura aliada ao som e o vídeo como veículos
para essa prolongada conversa. Entretanto,
em certa altura, tais componentes plásticas pareceram mais tímidas, por vezes quase
ausentes. Essa impressão era capaz de sugerir uma mudança na atitude artística da dupla, ou
então uma espécie de fechamento de ciclo — como
se as suas ideias nascessem a demandar serem plasticamente materializadas e, ao longo do
tempo, fossem se abstraindo até que sobrasse de si apenas uma memória sonora. Ao menos era
esse o engano, até ouvir Miguel e Eduardo a
planejarem um futuro para o seu trabalho, no qual as imagens voltam a reivindicar um papel
fundamental.
Do privilégio de poder, pela primeira vez, trabalhar ao seu próprio
ritmo e sem a obrigação de cumprir com datas
para um projeto específico, os dois artistas dividem comigo aquilo que está a se formar em
seus horizontes e que tem feito parte de suas rotinas de trabalho ao longo dos últimos dois
anos. À procura de pessoas cuja prática
diária envolva o conhecimento de algum ofício — e, por tal, se entendem as atividades que
exigem uma especialização e que, de alguma forma, envolvam um sentido de mecanização do
corpo —, a dupla inaugurou uma investigação imagética
por aquilo que acontece quando a tecnologia é percebida como uma extensão do humano, como se
referem ao discorrerem sobre o assunto. Por uma metodologia quase literal, tal investigação
envolve imagens cuja captura depende de
dispositivos de filmagem que simulam esse prolongamento do corpo humano. Em certa medida, a
própria escolha por tais meios de captura de imagem se relaciona com a conotação mecanicista
do termo “ofício”. Para além disso, as
pessoas envolvidas nessa nova jornada da dupla têm trabalhos que necessariamente envolvem o
cuidado ou a proximidade com outres (sendo esses humanos ou não-humanos).
Ouvi-los em
suas especulações ainda dispersas sobre
o futuro dessa pesquisa proporcionou o vislumbre de dois pontos que são passíveis de serem
identificados enquanto centrais em sua prática artística: a ideia de um novo trabalho ser,
na verdade, uma espécie de vida dupla daquilo
que foi realizado anteriormente — como se a obra fosse sempre uma obra em aberto, seguindo
uma definição feita por Luigi Ghirri —; e a importância da ambiguidade para uma prática que
é sempre limítrofe: que anuvia as fronteiras
de autoria, renega a necessidade institucional de categorização dentro da arte contemporânea
e afirma a vontade de existir e se bastar em si mesma.
Sobre a obra aberta, é sempre
instigante testemunhar um trabalho que
encontra em si mesmo a razão para as suas metamorfoses. Que permanece flexível e passível de
mudanças, e avança trazendo em si resquícios do que fora anteriormente. Que existe à mercê
dos caminhos que o atravessam. E, sobre
a ambiguidade, há certa graça em se ver diante daquilo que não se permite definir ou revelar
por inteiro. Do que constantemente serpenteia entre as categorias criadas pela necessidade
humana de catalogação. Do que é fugidio.
Contínua e indisciplinada, assim se pode caracterizar a prática da Musa Paradisiaca.
Exhibition view "Solar" at Appleton Square, Lisbon, 2023.
English Version
From an artificial Sun, a source of concentrated light and heat, time inside the dark room
is marked by a cyclic extinguishing and rekindling — a simulation of the intermittent nature
of the course of a day. All materiality around
dissipates, leaving the body in a black void, making this sun the only possible spatial
reference. It's as if we are witnessing a moment beyond the future, in which few remnants of
humanity persist. Only here, the Sun transmuted
into an oppressive metallic structure, dividing the origin of its light, once singular, into
small spheres, like replicas of itself. On the opposite end of the room where this new Sun
ostentatiously makes its presence felt,
three objects designed for listening and sound reproduction disturb the sepulchral silence.
For the first time since we entered the space, some familiar presence is recognizable: an
adult and a child engage in a conversation
without perceptible linearity or coherence, but with an evident dialogic character. Immersed
in the somber emptiness of this spectacularly constructed space, we lose the ability to
distinguish the beginning from the end, the
emergence from the disappearance of language, the past from the present, and the present
from the future.
The ambiguity of this state is not accidental but a characteristic
developed throughout a journey and central
to the creative impulse of the duo who have been producing works under the banner of Musa
paradisiaca since 2010. In Solar, an exhibition inaugurated last May at Appleton [Box], this
ambiguity is taken to a certain extreme.
Perhaps this is a consequence of processes that often involve the active participation of
many people collaborating with the duo composed of Eduardo Guerra and Miguel Ferrão.
Specifically in this exhibition, curator Claudia
Pestana played a fundamental role in the creative puzzle responsible for the reappropriation
of Solar Boat — an experience bordering on performance and happening that took place during
the BoCA biennial in 2021, where the same
sound installation was presented on a solar-powered boat trip across a lagoon in Ria
Formosa, Faro, Algarve.
In the journey from the vast and idyllic Algarve landscape to
the white cube of the gallery, the representation
of solar presence — as well as the understanding of the word itself — transformed from
abstraction to materiality, while spatiality went in the opposite direction, completely
detached from any figurative or material reference
and finding a new way to exist in the black void. In Solar, the only images that are
revealed are those that thought, in conversation with the sound installation, forges in the
imagination, whether they are anchored in a dialogic
perception of the work or not. This interaction that is created configures a hypothesis,
intrinsically related to the practice of Musa paradisiaca: that of a protolanguage born in
the interstices of the senses, words, images,
and everything that shapes the sensory.
This exercise, which could be referenced as a
kind of abstraction, reevaluation, or even disarticulation of language and speech, has been
a recurring theme in the duo's work. Alongside
the idea of collaboration in the creative process, this is perhaps what characterizes their
work the most — even when images populated it more vigorously, mainly through sculpture but
also through video, words seemed to be
the primary concern, specifically what happened when they encountered each other.
As
suggested in the text Silogisms in Motion, written by Sofia Lemos and published in the
context of the Visions of Misunderstanding catalog
about the duo's work, part of what is the subject of study in the field of linguistics (the
origin of language) can easily be misinterpreted and subjugated when analyzed from a
perspective that excessively privileges a worldview
based on European rationalism. Against such subjugation, we can think that the valuation,
even if firstly in the artistic field than in linguistic theory, of the sensory in the
conception of language may emerge as a possibility.
This perhaps means understanding language from the relationships capable of generating
subjectivities, whether they are between one person and another or between the human and the
non-human. Such an idea emerges with subtle
force in Musa's work, even when still in an embryonic stage, and permeates their production
consistently.
Exhibition view "The I of the Beeholder" at Fundação Carmona e Costa, Lisbon, 2020.