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Rendering Pyramids

Stills dos vídeos, apresentados na mostra on-line Hangar.

Portuguese Version

No princípio era o ermo.[1]

A voz lúgubre que entoa esse verso é também um fantasma que narra uma sina inerente à experiência histórica da formação do Brasil contemporâneo. Um país marcado pela utopia positivista e tecnocrata que, no entanto, parece ter se perdido pelo caminho. No lugar desse ideal, que nunca chegou a encontrar as condições materiais para se concretizar, restou um vórtice (talvez infinito) de contradições e reveses, sobre os quais nove artistas se debruçam para pensar esse país que, ainda hoje, parece refém de alguns dos fantasmas que o assombram desde a sua colonização.

“Rendering Pyramids”, mostra de vídeos patente na plataforma digital Hangar-online até o dia 6 de maio, propõe uma revisitação a esse passado do país. Pela curadoria de Raphael Fonseca, estão reunidos nove artistas que trabalham com mídias digitais e sete obras (duas das quais são colaborações entre dois artistas). Entre a criação de imagens por softwares e uma espécie de assemblage de imagens documentais manipuladas digitalmente, os trabalhos se empenham em um exercício comum para desvelar camadas de herança histórica — sempre sob uma perspectiva essencialmente contemporânea. Quando os artistas “revisitam” o passado, entretanto não o fazem em busca de um sentido nostálgico ou saudosista. Pelo contrário, o fazem enquanto método para moldar, inventar, fragmentar, reconstruir e virar esse passado ao avesso, fazendo nascer daí um novo imaginário sobre o Brasil.

Em “Os Ossos do Mundo”, livro do escritor modernista Flávio de Carvalho, no prefácio escrito por Gilberto Freyre há uma passagem que diz que é no arregalar dos olhos de menino e às vezes de doido que o autor é capaz de ver o mundo. De enxergar as relações entre as coisas e ver aquilo que “os adultos sofisticados” não conseguem ver[2]. Sem necessariamente essa intenção, Freyre acaba por referir a um dos papéis essenciais da própria prática artística: a de desvelar as coisas do mundo. Ao olhar para o trabalho que Raphael Fonseca vem desenvolvendo ao longo da última década, é possível perceber que parte de seu pensamento curatorial vive justamente de uma necessidade em questionar as bases epistêmicas que sustentam as categorias pelas quais aprendemos, classificamos e representamos o mundo.

No caso de “Rendering Pyramids”, é preciso reconhecer a sensibilidade do curador em conciliar trabalhos que manifestam esse mesmo ímpeto questionador. Nas obras que compõem a mostra, um olhar cuidadoso consegue identificar duas ideias trabalhadas atenciosamente pelos artistas — ainda que o façam de maneiras bastante díspares entre si. Uma é a do tempo enquanto entidade linear, irreversível e determinante. A outra é a da construção da própria identidade nacional brasileira e do seu imaginário.

Antes analisar a particularidade dos mecanismos utilizados e dos caminhos percorridos por cada uma das obras para elaborar novas hipóteses acerca dessas ideias, é possível apontar para um elemento que se mostra transversal em todas elas e que também merece ser destacado. A escolha por vídeos criados a partir de imagens geradas ou manipuladas digitalmente não é ocasional, mas sim expressão de uma espécie de espírito pós-moderno, que cria, dentro de sua linguagem visual própria, uma maneira de repensar as formas tradicionais de representação. “Renderizar Pirâmides”, como evoca o título em português, significa encontrar no cerne das imagens digitais um caminho para a erupção de ideias cristalizadas e inertes acerca dos conceitos de temporalidade e identidade nacional. Imagens geradas por computadores, sem lastro de origem na realidade, ou colagens digitais que fogem às convenções estéticas, provocam no espectador uma espécie de memória construída pela imaginação. Nesse jogo que aproxima a ficção da realidade, é preciso uma viagem no tempo para reinventar o significado das coisas.

Stills dos vídeos, apresentados na mostra on-line Hangar.

O tempo a morder a própria cauda

No arrebatador fluxo imagético que resulta da conjugação dos trabalhos apresentados na mostra, passado, presente e futuro se encontram, dissolvendo a experiência linear do tempo. Nessa desarticulação cronológica, eis que surge uma panóplia de hipóteses de espaços-tempo imaginários. Em “A Cristalização de Brasília” (Guerreiro do Divino Amor, 2019), os anos do pensamento utópico que fundamentou a construção da capital brasileira são revisitados como maneira de lançar um olhar profundamente crítico sobre o presente e, simultaneamente, projetar uma distópica visão de futuro. Pela sobreposição de imagens documentais e animações digitais, o artista trabalha como um arqueólogo digital, desvelando as camadas de realidade e de ficção do passado mitológico de Brasília, como forma de desafiar os regimes hegemônicos de representação. Na narração cuidadosamente pensada que acompanha o vídeo, também são confrontados dados históricos com aquilo que a obra chama de “superficção” — enquanto um eco de Vinícius de Moraes recita o poema musicado “Brasília, Sinfonia da Alvorada”.

Por uma lógica próxima, “Ibiritaquera” (Darks Miranda e Pedro França, 2016) encontra no Monumento às Bandeiras[3] a representação de um passado-presente de imaginário profundamente colonialista. Em uma sequência de imagens digitalmente criadas, a obra sugere uma reflexão sobre as tradições que ainda hoje moldam a sociedade brasileira ao mesmo tempo em que projeta uma hipótese de futuro, no qual parece possível vingar essa herança conservadora. É em um movimento bastante alegórico que uma natureza anárquica cresce dominante sobre o monumento e a cidade ao seu redor.

Em “Kebranto” (Jonas Van e Juno B, 2021-22), é o retorno a um passado ainda mais longíquo que conduz à ressignificação do presente-futuro. No vídeo, é em um negro vácuo espacial, — o qual, aos poucos, começa a ser preenchido por esferas de luz e pelo simulacro de paisagens e figuras naturais — que se recria a lenda de Boitatá. Serpente de fogo com poderes místicos, essa figura do folclore brasileiro é utilizada simbolicamente para introduzir pedaços de ficção em um passado-presente imaginado. Esse sagaz mecanismo contrapõe tradição e contemporaneidade ao recriar a lenda sob uma perspectiva que questiona a visão binária e heteronormativa de gênero — e, assim, aponta para a necessidade de repensar as formas dominantes de compreensão, narração e interpretação da História.

Em movimentos que acabam por criar vácuos e desintegrar por completo as noções de temporalidade, “Tropical Landscape Solutions” (Gabriel Junqueira, 2017) e “Elefante na Sala, Monolito Embaixo da Cama” (Marcus Deusdedit) são duas obras que pensam a apropriação, a montagem e as imagens descontextualizadas como mecanismos para construir narrativas e propor reflexões acerca das bases políticas, éticas, históricas e filosóficas que sustentam uma sociedade. Em ambas, a interação criada entre essas imagens estabelece um jogo dialético que expande o território geográfico e cognitivo abrangido pela mostra.

Um recurso visual muito próximo está presente em “BVGO” (biaritzzz, 2017), dessa vez alinhado à animação — naquilo que talvez seja a obra mais apocalíptica do conjunto. No confronto entre excertos de vídeos de manifestantes indígenas, imagens de jogos de realidade virtual, telas do jogo GTA e uma confusa narração jornalística, se evidencia uma contemporaneidade imersa em uma violenta fragilidade social. Aqui, o retorno ao passado recente não vislumbra nenhum alento ou sentimento de redenção. Já “@ilusão” (Vitória Cribb, 2020), obra que, na correta cronologia, inaugura a mostra, integra imagens criadas em softwares a uma narrativa guiada por mensagens de áudio em tom intimista. Nas evoluções monstruosas das figuras que povoam o vídeo, o tempo acaba por se convulsionar, transformando-se em uma espiral catalisadora de ansiedades e sentimentos angustiantes — que podem ser entendidos enquanto expressões sintomáticas da contemporaneidade.

O tempo, entretanto, não é o único elemento a ser desvairado em “Rendering Pyramids”. Como se estivesse diante do Enigma da Esfinge, vemos um Brasil que devora a si mesmo por não conseguir se decifrar. Em meio a iconografia e aos imaginários dos quais as obras se apropriam, a estética se torna o campo da luta de classes — da qual, felizmente, um sentimento libertador sai vitorioso. O que resta desse brilhante vórtice imagético que compõe a mostra é, para além da experiência de suspensão temporal, uma impressão de estarmos diante de um novo pensamento sobre a identidade brasileira. Há, na visão desses artistas, um compromisso despudorado com a ruptura das tradições artísticas eurocêntricas e com o desvelamento das camadas históricas e sociais de sedimentação do poder de representação.

Não há maneira de colocar isso senão dizendo que os olhares lançados aos diversos passados não se limitam em redescobrir a História. Eles vão além e buscam na implosão do tempo uma maneira de desafiar os regimes de representação hegemônicos e questionar cânones do pensamento colonial. Em universos permeados pela multiplicidade de corpos, linguagens visuais e ruídos, alguma coisa se inaugura. E, se a herança colonial ensinou ao colonizado a enxergar a si mesmo enquanto o Outro, aqui esse Outro se afirma enquanto indivíduo.

[1] Frase que inaugura o poema musicado “Brasília, Sinfonia da Alvorada”, de Vinícius de Moares e Tom Jobim.

[2] DE REZENDE CARVALHO, Flavio. Os Ossos do Mundo. ARIEL, Rio de Janeiro, 1936. Prefácio por Gilberto Freyre.

[3] O Monumento às Bandeiras é uma obra do escultor Victor Brecheret em homenagem aos bandeirantes (sertanistas do período colonial). Foi inaugurada em 1953, como parte das comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.

Stills from the videos, presented in the online exhibition Hangar.

English Version

“In the beginning, there was the wilderness.”[1]
— MORAES, Vinícius; Brasília, Symphony of Dawn.

The lugubrious voice that intones this verse is a ghost narrating an inherent fate of the historical experience in the formation of contemporary Brazil. A country marked by a positivist and technocratic utopia that, however, seems to have gone lost along the way. Instead of that ideal, which never found the material conditions to materialize, what remains is a vortex (perhaps infinite) of contradictions and setbacks, upon which nine artists delve to reflect on this country that, still to these days, seems to be a hostage of the ghosts that have haunted it since its colonization.

Rendering Pyramids, a video exhibition available on the Hangar-online digital platform until May 6th, proposes a revisiting of this time in the country 's past. Curated by Raphael Fonseca, the exhibition brings together nine artists working with digital media and features seven works (two of which are collaborations between two artists). From software generated images to a kind of digitally manipulated documentary assemblage, the works engage in a common exercise of unveiling layers of historical heritage — always from an essentially contemporary perspective. However, when the artists "revisit" the past, they do not do so in search of a nostalgic or wistful meaning. On the contrary, they do it as a method to shape, reinvent, fragment, reconstruct, and turn that past inside out, giving rise to a new imaginary about Brazil.

In Flávio de Carvalho's book Os Ossos do Mundo (The Bones of the World), in the preface written by Gilberto Freyre, there is a passage that says that it is in the wide-eyed gaze of a child and sometimes of a madman that the author is able to see the world — to see the relationships between things and to see what "sophisticated adults" cannot see[2]. Without necessarily intending to do so, Freyre refers to one of the essential roles of artistic practice: to unveil all things that are part of this world. When looking at the curatorial work that Raphael Fonseca has been developing over the past decade, it is possible to perceive that part of his curatorial thinking stems precisely from a need to question the epistemic foundations that sustain the categories through which we learn, classify, and represent the world.

Regarding Rendering Pyramids, one must recognize the curator's sensitivity in bringing together works that manifest this same questioning impulse. In all of them, it is possible that a more careful observation can identify two ideas that the artists have attentively explored, although they do so in quite disparate ways. One is the notion of time as a linear, irreversible, and determining entity. The other is the construction of Brazil's own national identity and the imaginary around it.

Before delving into the specific mechanisms and paths taken by each of the works to develop new hypotheses about these ideas, one can point out a transversal element that deserves attention. The choice of videos created from digitally generated or manipulated images is not accidental; it is an expression of a kind of postmodern spirit that, within its own visual language, offers a way to rethink traditional forms of representation. Rendering Pyramids, as the title suggests, means finding a path within digital imagery to trigger the eruption of crystallized and inert ideas about the concepts of temporality and national identity. Computer-generated images, with no trace in reality, or digital collages that defy aesthetic conventions, provoke in the viewer a kind of collective memory constructed by imagination. In this interplay between fiction and reality, a journey through time is necessary to reinvent the meaning of things.

Stills from the videos, presented in the online exhibition Hangar.

Time biting its own tail

In the overwhelming flow of images resulting from the combination of the works presented in the exhibition, the past, the present, and the future converge, dissolving the linear experience of time. In this chronological disarticulation, a plethora of hypothetical imaginary spaces emerges. In A Cristalização de Brasília (The Crystallization of Brasília)(2019) by Guerreiro do Divino Amor, the years of utopian thinking that underpinned the construction of the Brazilian capital are revisited as a way to cast a deeply critical eye on the present and simultaneously project a dystopian vision of the future. Through the superimposition of documentary footage and digital animations, the artist works as a digital archaeologist, unveiling the layers of reality and fiction in Brasília's mythological past, challenging hegemonic regimes of representation. The carefully crafted narration accompanying the video confronts historical data with what the work calls “superfiction", while echoing Vinícius de Moraes' musical poem Brasília, Sinfonia da Alvorada (Brasília, Symphony of Dawn).

Following a similar logic, Ibiritaquera (2016), by Darks Miranda and Pedro França, finds in the Monumento às Bandeiras[3] (a colonial monument located in one of the few green areas of São Paulo) a representation of a past-present deeply steeped in colonial imagery. Through a sequence of digitally created images, the work suggests a reflection on the traditions that still shape Brazilian society today while projecting a hypothesis for the future, in which it seems possible to avenge its conservative heritage. In a highly allegorical movement, anarchic nature grows dominant over the monument and the city around it.

In Kebranto (2021-22), by Jonas Van and Juno B, a return to an even more distant past leads to the redefinition of the present-future. In this video, a black spatial void is gradually filled by spheres of light and the simulacrum of landscapes and natural figures, recreating the legend of Boitatá. Here, this mythical fire serpent with supernatural powers is symbolically used to introduce elements of fiction into an imagined past-present. This brilliantly constructed mechanism juxtaposes tradition and contemporaneity, reimagining the ancient legend from a perspective that questions binary and heteronormative gender perspectives, pointing to the need to rethink dominant forms of understanding, telling, and interpreting History.

In movements that end up creating voids and completely disintegrating notions of temporality, Tropical Landscape Solutions (2017) by Gabriel Junqueira, and Elefante na Sala, Monolito Embaixo da Cama (Elephant in the Room, Monolith Under the Bed) by Marcus Deusdedit, explore appropriation, montage, and decontextualized images as mechanisms for constructing narratives and proposing reflections on the political, ethical, historical, and philosophical foundations that sustain a society. In both works, the interaction between these images establishes a dialectical play that expands the geographic and cognitive territory covered by the exhibition.

There's a similar visual language in BVGO (2017) by biaritzzz, only this time aligned with animation — in what perhaps is the most apocalyptic work in the exhibition. Through the juxtaposition of excerpts from videos of indigenous protesters, virtual reality games footages, screen recordings from the GTA game, and a confusing journalistic narration, a contemporaneity immersed in a violent social fragility is revealed. Here, the return to the recent past does not envision any solace or sense of redemption.

In Illusion (2020), by Vitória Cribb — the work that in the correct chronological order inaugurates the exhibition —, digitally generated images are integrated with an audio-narrated, intimate-toned narrative. The monstrous evolutions of the figures that populate the video cause time to convulse, turning it into a spiral that catalyzes anxieties and distressing emotions — a symptomatic expression of contemporaneity.

However, time is not the only element to be disruptively turned inside out in Rendering Pyramids. As if facing the Sphinx's enigma, we testify a Brazil devouring itself for failing to decipher itself. Amidst the iconography and imagery appropriated in these works, Aesthetics becomes the battleground of class struggle, from which a liberating sentiment ultimately emerges victorious. What remains from this brilliant imagistic vortex that composes the exhibition is, beyond the experience of temporal suspension, an impression of being confronted with a new understanding of Brazilian identity. Inside the core of these artists' works, there is an unabashed commitment to breaking away from eurocentric artistic traditions and uncovering the historical and political layers that have solidified the power systems of representation.

There is no other way to put it than to say that the gazes cast upon the various pasts go beyond the rediscovery of History. They aim higher and find in the implosion of time a way to challenge hegemonic regimes of representation and to question the canons of colonial thought. In universes permeated by the multiplicity of bodies, visual languages and noises, something new emerges. And if colonial heritage taught the colonized to see themselves as the Other, here that Other asserts itself as an Individual.

[1] Such phrase inaugurates the musicalized poem "Brasília, Symphony of Dawn", by Vinícius de Moraes and Tom Jobim.

[2] DE REZENDE CARVALHO, Flavio. "Os Ossos do Mundo". ARIEL, Rio de Janeiro, 1936. Preface by Gilberto Freyre.

[3] The "Monumento às Bandeiras" is a monument work by sculptor Victor Brecheret, paying homage to the bandeirantes (frontiersmen of the colonial period). It was inaugurated in 1953 as part of the celebrations for the IV Centenary of the city of São Paulo.

Courtesy by Hangar

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